A medicina sempre foi uma profissão guiada pela ética, pela ciência e pela confiança entre médico e paciente. No entanto, o modo como essa relação se inicia mudou. Hoje, o primeiro contato muitas vezes acontece no ambiente digital, em um vídeo, uma publicação nas redes sociais ou uma pesquisa no Google.
De acordo com o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br, 2022), a maioria dos brasileiros utiliza a internet como principal fonte de informação em saúde. Esse comportamento marca a consolidação do chamado “paciente digital”, uma evolução natural do que Philip Kotler descreve em seu conceito de Marketing 5.0, centrado em tecnologia e humanização (Kotler, 2021).
Nesse cenário, comunicar-se de forma clara e ética é parte essencial do cuidado. Como apontam Kotler e Keller (2016), marketing não se trata de persuadir, mas de entregar valor, e, na medicina, esse valor está em educar, orientar e construir confiança. A consultoria McKinsey & Company (2023) reforça que experiências consistentes ao longo da jornada do paciente (da busca inicial até o pós-atendimento) aumentam a percepção de credibilidade e satisfação.
Ao mesmo tempo, a Harvard Business Review (2022) destaca que, em um ambiente de sobrecarga informacional, a confiança é o principal diferencial competitivo de qualquer profissional de saúde. Isso reforça a importância de uma presença digital responsável, transparente e fundamentada.
Com base nessa realidade, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução nº 2.336/2023, que atualiza o Manual de Publicidade Médica. O novo documento reconhece a legitimidade da comunicação digital, mas estabelece critérios claros para garantir que ela seja feita com ética e sobriedade.
Este artigo tem como objetivo explicar, de forma prática e fundamentada, o que o CFM permite — e o que continua proibido — no marketing médico digital, oferecendo aos profissionais uma referência segura para comunicar-se com o público de forma moderna, educativa e alinhada à ética médica.
O que o CFM permite no marketing médico digital
A resolução atual reconhece a legitimidade da presença online e traz liberdades com responsabilidade. Abaixo, os principais pontos, sempre com exemplos práticos.
Identificação profissional visível
Em perfis, sites e demais canais próprios, sempre coloque nome completo, “MÉDICO(A)”, CRM e especialidade/área de atuação (quando registrada), com RQE. Conteúdos temporários (ex.: stories) também devem estar vinculados a perfis que tragam a identificação em lugar visível, conforme o Manual.
Exemplo prático
- Pode: manter bio do Instagram com Nome, CRM-UF e RQE(s) e página “Sobre” no site com formação e registros.
- Não pode: perfis “anônimos” ou com informações vagas, sem CRM.
Comunicação educativa e informativa
É permitido falar sobre doenças, prevenção, sintomas e tratamentos, em linguagem clara, com finalidade educativa, não promocional. Isso se alinha ao princípio de gerar valor real (Kotler & Keller, 2016).
Exemplo prático
- Pode: vídeo curto sobre sinais de alerta de endometriose e quando buscar atendimento.
- Não pode: “cura definitiva”, “resultado garantido” ou “técnica milagrosa”.
Divulgação de valor de consulta e meios de pagamento (com critérios)
A resolução admite informar valores de consulta e meios de pagamento nos canais próprios, conforme os parâmetros descritos no Manual e observando o CRM local. A divulgação não deve induzir captação antiética, nem se confundir com pacotes comerciais de procedimentos.
Exemplo prático
- Pode: página no site com “Consulta particular: R$ ___ / Cartões • PIX • Convênios listados”.
- Não pode: “pacote de cirurgia + consulta grátis” ou lista pública de valores de procedimentos (que dependem de avaliação médica).
Descontos e campanhas (com regras e moderação)
É possível anunciar abatimentos/descontos em campanhas pontuais, desde que a ação seja eticamente justificável, não configure “venda casada” e seja comprovável em caso de fiscalização (histórico de preços). A ênfase deve permanecer educativa.
Exemplo prático
- Pode: “Semana de Saúde da Mulher: avaliação clínica com valor promocional”.
- Não pode: “Feche o procedimento X e ganhe a consulta”.
Mostrar ambiente de trabalho e equipe (sem sensacionalismo)
Fotos/vídeos do consultório, recepção, equipe e do(a) próprio(a) médico(a) são admitidos quando sobriedade e decoro forem respeitados. “Selfies” profissionais são aceitas se a comunicação permanecer informativa.
Exemplo prático
- Pode: “Bastidores” da rotina, como montagem da sala, checagem de protocolos.
- Não pode: ostentação, linguagem apelativa, foco em luxo/status.
Apresentar aparelhos e recursos tecnológicos (com base regulatória)
É permitido informar sobre tecnologias disponíveis, desde que se utilizem indicações aprovadas (ex.: Anvisa) e sem superlativos (“único”, “melhor”, “revolucionário”).
Exemplo prático
- Pode: “Dispomos do equipamento X, aprovado pela Anvisa para…; indicações, riscos e limites”.
- Não pode: “Aparelho exclusivo que garante o melhor resultado”.
Cursos para leigos e ações educativas pagas (sem “consulta à distância”)
O médico pode organizar cursos educativos para leigos (inclusive pagos) e divulgar seus valores. É vedado realizar consulta, diagnóstico ou ensinar atos privativos de médico nesses espaços.
Exemplo prático
- Pode: curso online “Primeiros 100 dias do bebê” para pais, com preço informado.
- Não pode: responder casos individuais no curso como se fosse consulta.
Repostar elogios de pacientes (com parcimônia)
O Manual de Publicidade Médica permite que o médico compartilhe publicações de terceiros ou de pacientes com elogios à sua atuação, desde que isso seja feito com moderação.
De acordo com a Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos (Codame), ao repostar essas mensagens, elas passam a ser consideradas como postagens do próprio médico, sujeitas a todas as normas éticas previstas na resolução.
O compartilhamento não deve ser reiterado, ou seja, é permitido no máximo duas vezes por semestre (sendo o mesmo paciente). Acima desse limite, a prática pode ser interpretada como sensacionalismo ou concorrência desleal, contrariando o princípio de sobriedade que rege a comunicação médica.
Exemplo prático
- Pode: repostar uma ou duas vezes por semestre um agradecimento pontual, de caráter espontâneo e educativo.
- Não pode: transformar elogios do mesmo paciente em série frequente de autopromoção.
O que o CFM proíbe no marketing médico digital
A lista de vedações protege a dignidade da profissão e a confiança do paciente. Abaixo, os pontos-chave, com exemplos práticos.
Promessas de resultado e linguagem apelativa
É proibido garantir, prometer ou insinuar resultados. Termos absolutos como “definitivo”, “garantido”, “milagroso” são vedados. Isso corrói confiança e reputação no ambiente digital (Harvard Business Review, 2022).
Exemplo prático
- Não pode: “Rejuvenesça em 30 minutos com resultado garantido”.
- Pode: “Tratamento indicado conforme avaliação; resultados variam entre pacientes”.
Publicidade sensacionalista e autopromocional
Vedada linguagem que banalize o ato médico, ostente status ou crie pânico/medo. A comunicação deve ser sóbria e informativa.
Exemplo prático
- Não pode: “A técnica que revolucionou tudo, só aqui!”.
- Pode: “Técnica com evidências em casos selecionados; riscos e limites”.
Concorrência desleal e desrespeito a colegas
É vedado denegrir técnicas, especialidades ou colegas; proibido usar gratuidade como chamariz publicitário (“consulta grátis”) em consultório privado.
Exemplo prático
- Não pode: “Minha técnica é superior à dos demais”, “Consulta grátis para atrair pacientes”.
- Pode: explicar indicações clínicas e evidências sem comparar pessoas.
Transmissão ao vivo de procedimentos/consultas
Vedada a exposição em tempo real de procedimentos ou consultas em redes abertas (exceção: eventos científicos fechados).
Exemplo prático
- Não pode: live mostrando cirurgia em tempo real.
- Pode: live educativa sobre prevenção e fluxo de atendimento.
Especialidades e áreas de atuação (evitar confusão)
Não divulgar especialidade não registrada (sem RQE). Em pós-graduação lato sensu, observar a forma correta de apresentação, sem sugerir especialidade.
Exemplo prático
- Não pode: “Agora especialista em Cardiologia” (sem RQE).
- Pode: “Pós-graduação em ___ (não especialista)” quando aplicável e permitido pelo CRM local.
Uso de imagens e “antes e depois”: formato educativo obrigatório
A resolução permite uso de imagens (incluindo “antes e depois”) somente com finalidade educativa, consentimento escrito, anonimização e sem manipulação que distorça resultados. O Manual orienta um formato educativo robusto (mais adequado a páginas de site que a posts isolados), contemplando:
- Contexto clínico: explicar a condição, quando buscar ajuda;
- Diversidade de casos: apresentar múltiplos casos (não um único “showcase”);
- Resultados e variações: sinalizar que resultados variam;
- Riscos e complicações: explicitar potenciais eventos adversos;
- Sem nudez em redes abertas, sem compensações pelo uso da imagem e LGPD sempre observada.
Exemplo prático
- Pode: página no site com seção “Entenda o tratamento X”, incluindo indicações, alternativas, limites, riscos e exemplos diversos.
- Não pode: carrossel de “antes e depois” com tom publicitário, isolado e sem contexto educativo.
Aplicação prática: checklist de conformidade ética
- O conteúdo é educativo, não promocional.
- Nome, MÉDICO(A), CRM e RQE estão claros.
- Não há promessas de resultados.
- Tom científico e informativo, com fontes confiáveis.
- Imagem de paciente: há consentimento, anonimização e contexto educativo.
- Se há preço, é apenas o valor da consulta.
- Nada de diagnósticos em comentários ou mensagens diretas.
- Revisar sempre antes de publicar.
Antes de publicar (check rápido)
- A bio/perfil está completa (Nome, MÉDICO, CRM, RQE)?
- O texto não promete resultados?
- Não há linguagem apelativa ou comparações com colegas?
- Nenhum procedimento ou consulta é mostrado ao vivo?
- Campanha promocional tem justificativa ética e registro de preço?
- Se há imagem de paciente, segue formato educativo e LGPD?
Uma nova postura digital
A Resolução nº 2.336/2023 não é “liberação geral”, é uma evolução que exige discernimento, responsabilidade e profissionalismo. O marketing médico digital não limita; qualifica: amplia o alcance da boa medicina, combate a desinformação e fortalece a imagem do profissional.
Em um mundo em que a confiança é moeda rara, ética e clareza são o verdadeiro diferencial competitivo (Harvard Business Review, 2022). A experiência consistente em toda a jornada do paciente melhora satisfação e fidelização (McKinsey, 2023). Na base, permanece o princípio de comunicar valor real às pessoas, com integridade (Kotler & Keller, 2016).
Importante
Este artigo apresenta um resumo dos principais pontos da Resolução CFM nº 2.336/2023 e do Manual de Publicidade Médica, com o objetivo de orientar e conscientizar os profissionais sobre boas práticas de comunicação digital. No entanto, ele não substitui a leitura integral dos documentos oficiais, que contêm detalhes e exemplos específicos para diferentes situações.
Para conhecer todas as regras e atualizações, acesse:
- Resolução CFM nº 2.336/2023 (Publicidade Médica): https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2023/2336_2023.pdf
- Manual de Publicidade Médica (edição completa): https://www.flip3d.com.br/pub/cfm/index9/?numero=45&edicao=5578
Referências bibliográficas
- Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução nº 2.336/2023 — Dispõe sobre a publicidade médica e atualiza as normas de comunicação dos profissionais de saúde. Brasília, 2023.
- Conselho Federal de Medicina (CFM). Manual de Publicidade Médica. Brasília, 2023.
- Conselho Federal de Medicina (CFM). Código de Ética Médica. Brasília, 2019.
- Revista Bioética (CFM). Comunicação médica e responsabilidade ética na era digital. Brasília, 2023.
- Cetic.br | CGI.br. Pesquisa TIC Saúde 2021 (publicação 2022). Comitê Gestor da Internet no Brasil.
- Kotler, P.; Kartajaya, H.; & Setiawan, I. Marketing 5.0: Technology for Humanity. Wiley, 2021.
- Kotler, P. & Keller, K. L. Marketing Management. 15th ed., Pearson, 2016.
- McKinsey & Company. Marketing in Healthcare: Improving the Consumer Experience. 2023.
- Harvard Business Review. Trust and Ethics in the Digital Era. 2022.