O consumo de cranberry (Vaccinium macrocarpon) para a prevenção da cistite recorrente tem sido objeto de inúmeros estudos devido à alta prevalência e às elevadas taxas de recorrência das infecções do trato urinário (ITUs), particularmente entre as mulheres. As ITUs afetam milhões de pessoas anualmente, sendo que aproximadamente 50–60% das mulheres apresentarão pelo menos um episódio ao longo da vida, e uma proporção significativa delas enfrentará infecções recorrentes. ¹,²
Havia uma crença inicial de que os benefícios do cranberry na prevenção das ITUs deviam-se à acidificação da urina, entretanto, com a evolução do conhecimento, foram identificadas as proantocianidinas (PACs) como compostos bioativos chave, com propriedades de inibição da adesão bacteriana 3,4
A Comissão Nacional Especializada de Uroginecologia e Cirurgia Vaginal da FEBRASGO em sua mais recente diretriz, em alinhamento com as diretrizes de diversas outras entidades, como as da Associação Europeia de Urologia, da Sociedade Brasileira de Urologia e da Sociedade Brasileira de Infectologia, manifestou-se no sentido de reconhecer que vivemos um aumento da resistência antimicrobiana entre os uropatógenos e, assim, há a necessidade de estratégias profiláticas eficazes para as ITUs de repetição que não envolvam o uso de antibióticos 5, 6, 7, 8, 9 Dessa forma, produtos à base de cranberry, disponíveis em diferentes formas como sucos, cápsulas e extratos, têm sido amplamente estudados, embora a dose ideal, a formulação mais eficaz e os mecanismos biológicos subjacentes ainda não estejam bem definidos 10, 11, 12. 13.
Apesar de inúmeros ensaios clínicos, ainda há lacunas no conhecimento sobre a dose ideal de PAC necessária para a atividade antiaderente e sobre a eficácia comparativa das diferentes formas de cranberry (sucos, cápsulas e suplementos) 14. 15, 16. Persistem controvérsias, com alguns estudos relatando reduções significativas na recorrência de ITUs e outros mostrando ausência de efeito, frequentemente atribuída a diferenças metodológicas e à falta de quantificação padronizada de PACs 17, 18.
Essas incertezas limitam as recomendações clínicas e podem afetar a adesão e os desfechos das pacientes9. Abordar essas lacunas é essencial para reduzir o uso de antibióticos e combater a resistência bacteriana19.
É importante mencionar que a plausibilidade biológica do uso do cranberry na prevenção das ITUs centra-se nas propriedades antiaderentes das PACs, particularmente aquelas com ligações do tipo A, que inibem a adesão da Escherichia coli uropatogênica às células uroepiteliais, prevenindo assim o início da infecção 4, 20. Esse mecanismo vincula a dosagem e a formulação do cranberry à eficácia clínica na prevenção da cistite recorrente. A compreensão da farmacocinética e da biodisponibilidade das PACs contribui para o estabelecimento de estratégias de dosagem ideais e para a padronização dos produtos, alinhando-se ao propósito do tratamento 21, 23.
Uma revisão sistemática Cochrane de 2023, com 8 estudos randomizados e 1.555 participantes, demonstrou redução significativa do risco de ITUs sintomáticas em mulheres com histórico de recorrência (RR 0,74; IC 95%: 0,55–0,99). Esses achados fazem parte de uma revisão mais ampla que incluiu 50 estudos com mais de 8.800 participantes, avaliando diferentes populações suscetíveis à ITU e diversas formulações de cranberry.
Entretanto, os estudos clínicos analisados na revisão Cochrane de 2023 apresentam considerável heterogeneidade quanto à formulação e à dosagem de PACs 9. As doses variaram de 7,5 mg a mais de 200 mg/dia, sem evidência clara de superioridade linear com doses mais altas. Estudos como o de Sengupta²², que foi incluído na revisão Cochrane, mostraram eficácia com apenas 7,5 mg/dia, indicando que doses mais baixas podem ser eficazes quando utilizadas de forma consistente. Registramos que embora os estudos com doses mais altas de PAC (36–72 mg) tenham demonstrado eficácia, também há ensaios clínicos com doses de 7,5 a 18 mg mostrando resultados benéficos na prevenção de ITUs, especialmente quando o produto é utilizado de forma regular e contínua. Dessa forma, a revisão Cochrane, embora não estabeleça uma dose ideal, incluiu estudos com doses baixas de PAC e mesmo assim encontrou benefício estatisticamente significativo na redução de ITU 9.
A escolha da formulação com 7,5 mg de proantocianidinas (PACs) encontra respaldo não apenas nos resultados clínicos de estudos como o de Sengupta 22, mas também em uma análise ética e pragmática da prática médica. É razoável acreditar que doses baixas de PACs, quando utilizadas de forma consistente e em produtos padronizados, podem oferecer benefícios clínicos relevantes na prevenção de infecções urinárias de repetição.
Assim, a formulação com 7,5 mg apresenta vantagens importantes:
- Maior segurança para o uso prolongado, inclusive em pacientes polimedicados.
- Melhor adesão ao tratamento em virtude de menores efeitos gastrointestinais.
- Adequação como intervenção populacional de baixo custo quando comparada às formulações com doses maiores de PACs
- Redução do risco de abandono do tratamento por intolerância.
Portanto, do ponto de vista ético e científico, a formulação com 7,5 mg de PACs deve ser compreendida como parte de uma estratégia de profilaxia acessível, segura e racional, não sendo inferior a formulações mais concentradas em contextos adequadamente indicados. A padronização da concentração de PACs, o uso regular e a orientação médica continuam sendo fatores essenciais para a eficácia clínica do cranberry na prevenção de ITUs de repetição. É tempo de integrar essa abordagem como parte do arsenal profilático para mulheres com ITUs de repetição.
Referências bibliográficas
¹ EAGAN, Michael. UCLA Nutrition Bytes Title Cranberry Juice for Prevention of Urinary Tract Infection in Women. Nutrition Bytes, v. 8, n. 1, 2002.
² XIA, Jia-yue et al. Consumption of cranberry as adjuvant therapy for urinary tract infections in susceptible populations: A systematic review and meta-analysis with trial sequential analysis. PLOS ONE, v. 16, n. 9, p. e0256992, 2 set. 2021.
³ BRENDLER, Thomas; HOWELL, Amy. American Cranberry (Vaccinium macrocarpon Ait.) and the Maintenance of Urinary Tract Health. In: [S.l.: S.n.]. p. 81–117.
4 HOWELL, Amy B. Bioactive compounds in cranberries and their role in prevention of urinary tract infections. Molecular Nutrition & Food Research, v. 51, n. 6, p. 732–737, 29 jun. 2007.
5 DE ROSSI, Patricia et al. Joint report of SBI (Brazilian Society of Infectious Diseases), FEBRASGO (Brazilian Federation of Gynecology and Obstetrics Associations), SBU (Brazilian Society of Urology) and SBPC/ML (Brazilian Society of Clinical Pathology/Laboratory Medicine): recommendations for the clinical management of lower urinary tract infections in pregnant and non-pregnant women. Brazilian Journal of Infectious Diseases, v. 24, n. 2, p. 110–119, 1 mar. 2020
6 FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA/COMISSÃO NACIONAL ESPECIALIZADA EM UROGINECOLOGIA E CIRURGIA VAGINAL. Infecção do Trato Urinário. Disponível em: <https://www.febrasgo.org.br/pt/ginecologia/item/infeccao-do-trato-urinario>. Acesso em: 19 jul. 2025.
7 KRANZ, Jennifer et al. European Association of Urology Guidelines on Urological Infections: Summary of the 2024 Guidelines. European Urology, v. 86, n. 1, p. 27–41, jul. 2024.
8 ORŁOWSKA, Dominika et al. Consumption of cranberry and probiotics as a natural remedy for urinary tract infections. Quality in Sport, v. 28, p. 55539, 25 out. 2024.
9 WILLIAMS, Gabrielle et al. Cranberries for preventing urinary tract infections. Cochrane Database of Systematic Reviews, v. 2023, n. 11, 10 nov. 2023.
10 ASMA, Babar et al. Standardised high dose versus low dose cranberry Proanthocyanidin extracts for the prevention of recurrent urinary tract infection in healthy women [PACCANN]: a double blind randomised controlled trial protocol. BMC Urology, v. 18, n. 1, p. 29, 2 dez. 2018.
11 GUIRGUIS-BLAKE, Janelle. Cranberry products for treatment of urinary tract infection. American family physician, v. 78, n. 3, p. 332–3, 1 ago. 2008.
12 MICALI, Salvatore et al. Cranberry and Recurrent Cystitis: More than Marketing? Critical Reviews in Food Science and Nutrition, v. 54, n. 8, p. 1063–1075, 5 jan. 2014.
13 RAZ, R.; CHAZAN, B.; DAN, M. Cranberry Juice and Urinary Tract Infection. Clinical Infectious Diseases, v. 38, n. 10, p. 1413–1419, 15 maio 2004.
14 BABAR, Asma et al. High dose versus low dose standardized cranberry proanthocyanidin extract for the prevention of recurrent urinary tract infection in healthy women: a double-blind randomized controlled trial. BMC Urology, v. 21, n. 1, p. 44, 23 dez. 2021.
15 HOWELL, Amy B. et al. Dosage effect on uropathogenic Escherichia coli anti-adhesion activity in urine following consumption of cranberry powder standardized for proanthocyanidin content: a multicentric randomized double blind study. BMC Infectious Diseases, v. 10, n. 1, p. 94, 14 dez. 2010.
16 TAMBUNAN, Made Parulian; RAHARDJO, Harrina Erlianti. Cranberries for women with recurrent urinary tract infection: a meta-analysis. Medical Journal of Indonesia, v. 28, n. 3, p. 268–75, 4 out. 2019.
17 BEEREPOOT, Mariëlle A. J. Cranberries vs Antibiotics to Prevent Urinary Tract Infections. Archives of Internal Medicine, v. 171, n. 14, p. 1270, 25 jul. 2011.
18 STAPLETON, Ann E. et al. Recurrent Urinary Tract Infection and Urinary Escherichia coli in Women Ingesting Cranberry Juice Daily: A Randomized Controlled Trial. Mayo Clinic Proceedings, v. 87, n. 2, p. 143–150, fev. 2012.
19 CARVALHO, N. I. et al. The evolution of recommendations for cranberry use in recurrent urinary tract infections: A systematic review. Ukrainian Journal of Nephrology and Dialysis, n. 1(73), p. 81–89, 13 out. 2021.
20 KHOO, Christina; LIU, Haiyan. Effect of Cranberry Polyphenols and Metabolites on Microbial Activity and Impact on Urinary Tract Health. In: Polyphenols: Prevention and Treatment of Human Disease. [S.l.]: Elsevier, 2018. p. 89–105.
21 OCCHIPINTI, Andrea et al. “Prevention of Urinary Tract Infection with Oximacro, A Cranberry Extract with a High Content of A-Type Proanthocyanidins: A Pre-Clinical Double-Blind Controlled Study.” Urology journal v. 13,2 2640-9, 16 abril 2016.
22 SENGUPTA, K. et al. A Randomized, Double Blind, Controlled, Dose Dependent Clinical Trial to Evaluate the Efficacy of a Proanthocyanidin Standardized Whole Cranberry (Vaccinium macrocarpon) Powder on Infections of the Urinary Tract. Current Bioactive Compounds, v. 7, n. 1, p. 39–46, 1 mar. 2011.
23 PIERRO, Francesco Di. The need for a more exact analytical characterization and dosing of cranberry extract in relation with its actual therapeutic properties. Alternative & Integrative Medicine, v. 2, n. 1, p. 107, 20 dez. 2013.