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Como os médicos podem usar produtos digitais para gerar mais valor e novas fontes de receita

Os recursos digitais já fazem parte da rotina da assistência e da gestão em saúde. Telemedicina, prontuário eletrônico, aplicativos e conteúdos online passaram a integrar o dia a dia de consultórios e clínicas, influenciando a forma como médicos e pacientes se relacionam.

Ao mesmo tempo, o Physician Burnout & Depression Report 2024 (Medscape, 2024) mostra níveis elevados de exaustão entre médicos, associados à sobrecarga de trabalho, ao excesso de tarefas administrativas e à sensação de pouco controle sobre a rotina. Nesse contexto, depender quase exclusivamente da remuneração por consultas presenciais torna-se um modelo cada vez mais desafiador, tanto financeiramente quanto em termos de qualidade de vida profissional.

Paralelamente, cresce a demanda da população por informação qualificada em saúde, orientação confiável e formatos mais flexíveis de aprendizado e acompanhamento. Esse cenário abre espaço para o desenvolvimento de produtos digitais alinhados à ética, centrados na educação em saúde e capazes de gerar valor para pacientes, familiares e outros profissionais, ao mesmo tempo em que diversificam as fontes de receita de médicos e clínicas.

O objetivo deste artigo é traduzir o conceito de produtos digitais, amplamente discutido na literatura de marketing e gestão (Kotler & Keller, 2016; Halligan & Shah, 2014), para a realidade do consultório e da clínica médica no Brasil, mostrando:
● O que são produtos digitais na medicina;
● Como eles podem gerar valor para pacientes e médicos;
● Quais são os limites éticos e regulatórios estabelecidos pelo CFM;
● E um passo a passo para começar a implementá-los de forma responsável.


O que é um produto digital na prática médica?

Na teoria de marketing, o produto é o centro da troca de valor entre uma organização e o cliente. Em ambientes digitais, fala-se em produtos digitais: ofertas concebidas, entregues e consumidas em formato eletrônico, como cursos, e-books, assinaturas, aplicativos ou programas online (IQVIA, 2024).

No consultório tradicional, o “produto” principal é o serviço médico: a consulta (presencial ou por telemedicina), o exame ou o procedimento. O ambiente digital, porém, permite transformar conhecimento, experiência clínica e capacidade de comunicação do médico em ativos estruturados, que podem ser replicados, escalados e acessados por mais pessoas, sem que isso signifique transformar a medicina em comércio ou violar o Código de Ética.

Adaptando o conceito ao contexto brasileiro e às normas do Conselho Federal de Medicina (CFM), podemos considerar como produtos digitais na medicina:

● Conteúdos estruturados para leigos
E-books, guias em PDF, vídeos e minicursos explicando temas específicos (pré-natal, dor crônica, preparo para cirurgia, cuidados com idosos, manejo de doenças crônicas), sempre com foco educativo e com avisos explícitos de que não substituem consulta médica.

● Programas online em grupo
Jornadas educativas de duração definida (por exemplo, 4 ou 8 semanas) para pacientes ou familiares, com encontros virtuais, materiais complementares e foco em educação em saúde, adesão ao tratamento e organização da rotina.

● Comunidades e clubes de assinatura
Espaços digitais (plataformas, apps, áreas restritas em site) com conteúdos continuados, encontros mensais e materiais exclusivos sobre temas de saúde.

● Cursos e mentorias para profissionais de saúde
Atualização científica, discussão de protocolos, formação em comunicação com pacientes, gestão de consultório, liderança em saúde ou trabalho em equipe multiprofissional.

● Serviços digitais regulados
Teleconsulta, teleinterconsulta, teledocência e telemonitoramento, desde que realizados em conformidade com a Resolução CFM nº 2.314/2022, que define e regulamenta a telemedicina (CFM, 2022).

A Resolução CFM nº 2.336/2023, que dispõe sobre publicidade e propaganda médicas, e o Manual de Publicidade Médica reforçam que médicos podem participar de ações educativas para o público leigo, inclusive em formato digital, desde que:

● O foco seja informativo/educativo;
● Não se realize consulta ou prescrição individualizada nesses ambientes;
● Não se ensinem atos privativos da medicina a leigos;
● Sejam evitadas promessas de resultado, linguagem sensacionalista e autopromoção exagerada (CFM, 2023).

Em outras palavras, produtos digitais médicos devem ser pensados como extensão
da missão de educar e cuidar, e não como substitutos da consulta ou instrumento
de captação agressiva de pacientes.

Produtos digitais como extensão do valor em saúde
Philip Kotler e Kevin Keller (2016) destacam que o valor percebido pelo cliente resulta da relação entre os benefícios que ele percebe e os custos que assume, não apenas preço, mas também tempo, esforço e riscos envolvidos.

Na medicina, a percepção de valor do paciente está profundamente ligada à:

● Confiança na competência técnica do médico;
● Clareza das explicações;
● Sensação de segurança nas decisões;
● Acolhimento e respeito;
● Acesso a informações em linguagem acessível.

Kotler e Keller (2016) descrevem ainda o conceito de níveis de produto, que pode ser adaptado à realidade do consultório:

1. Benefício central
○ Alívio do sofrimento, prevenção de doenças, melhoria da qualidade de vida.

2. Produto básico
○ Consulta, exame, procedimento, laudo.


3. Produto esperado
○ Atendimento pontual, explicações adequadas, orientações básicas pós-consulta.

4. Produto ampliado
○ É aqui que muitos produtos digitais se encaixam:

■ E-books pós-consulta;
■ Vídeos explicando o preparo para exames;
■ Cursos curtos para pacientes com doenças crônicas;
■ Áreas restritas com trilhas de conteúdo personalizadas.

5. Produto potencial
○ Inovações futuras, que combinam educação em saúde, tecnologia, monitoramento e equipe multiprofissional.

Ao criar produtos digitais, o médico amplia esse “produto saúde”, oferecendo suporte antes, durante e depois da consulta, fortalecendo a adesão ao tratamento e a confiança na relação médico-paciente.

Dois grandes grupos: produtos de valor e produtos de receita
Uma forma prática de organizar o raciocínio é dividir os produtos digitais em dois
grandes grupos, que se complementam:

1. Produtos de valor

São aqueles que não necessariamente geram receita direta, mas melhoram a experiência e a jornada do paciente.

Exemplos:

● Portais e áreas do paciente com resultados, orientações pós-consulta e materiais educativos.
● Séries de vídeos explicativos sobre determinados exames, cirurgias ou etapas de tratamento.
● Guias digitais gratuitos sobre temas recorrentes na sua especialidade.

Peter Drucker (1954) lembra que a missão de qualquer organização é “criar e manter clientes satisfeitos”. Na medicina, isso significa criar e manter pacientes bem informados, seguros e engajados no cuidado. Produtos de valor contribuem diretamente para esse objetivo, reforçando a reputação do médico e da clínica.

2. Produtos de receita
São produtos em que o conhecimento do médico é organizado de forma estruturada e monetizado, gerando receitas complementares ao atendimento clínico, sem substituir a consulta.

Exemplos:
Cursos online para leigos sobre temas específicos (por exemplo, “Entendendo sua endometriose”, “Como cuidar de um familiar com demência”).
Programas pagos de educação em grupo para pacientes com doenças crônicas, com encontros virtuais e materiais de apoio.
Cursos e mentorias para profissionais de saúde, focados em atualização, comunicação ou gestão de consultório.
Comunidades e assinaturas com conteúdos recorrentes, encontros mensais e materiais exclusivos.

O valor percebido não está na promessa de resultado clínico, mas sim na organização do conhecimento, na curadoria de informações confiáveis e na didática aplicada à realidade do público.


Limites éticos e regulatórios: o que o CFM permite (e o que não permite)
Todo projeto de produto digital em medicina precisa estar ancorado no Código de Ética Médica, na Resolução CFM nº 2.336/2023 (publicidade) e, quando envolver telemedicina, na Resolução CFM nº 2.314/2022 (CFM, 2019; CFM, 2022; CFM, 2023). Alguns pontos centrais:

Publicidade médica
Toda comunicação pública sobre atividade médica, inclusive divulgação de cursos, e-books e programas digitais, é considerada publicidade e deve seguir a Resolução CFM nº 2.336/2023 e o Manual de Publicidade Médica.

● Proibição de promessas de resultado
São vedadas promessas de cura, garantias de sucesso e uso de expressões como “definitivo”, “100% garantido” ou “resultado imediato”. Isso vale tanto para serviços presenciais quanto para produtos digitais.

● Autopromoção e sensacionalismo
Linguagem exagerada, exploração do medo ou da vulnerabilidade do paciente, uso sensacionalista de imagens ou de depoimentos podem configurar infração ética. A comunicação deve ser informativa e educativa, não apelativa.

● Cursos e grupos para leigos
São permitidos quando têm caráter educativo, mas não podem envolver consulta, prescrição ou ensino de atos privativos da medicina a leigos.

● Concorrência desleal
Comparações depreciativas com outros médicos, “combos” agressivos e estratégias de captação que desrespeitem a dignidade da profissão são proibidos.

Diante disso, antes de lançar um produto digital, é fundamental:
● Ler na íntegra a Resolução CFM nº 2.336/2023;
● Consultar o Manual de Publicidade Médica;
● Buscar orientação da CODAME ou do CRM local em caso de dúvida.


Como produtos digitais reforçam autoridade e confiança

Philip Kotler (2016) ressalta que o valor percebido é influenciado não apenas por atributos objetivos, mas também por fatores intangíveis, como confiança na marca e credibilidade. Na medicina, esses intangíveis são decisivos.

Produtos digitais, inclusive os gratuitos, como blogs, podcasts, vídeos educativos e newsletters, podem:

● Posicionar o médico como referência em temas específicos (por exemplo, pré-natal de alto risco, saúde intestinal, oncologia, dor crônica);
● Fortalecer a relação médico-paciente, já que pacientes expostos a conteúdos de qualidade tendem a chegar à consulta mais informados e receptivos;
● Escalar a reputação, permitindo que o conteúdo chegue a mais pessoas além do círculo geográfico imediato.

Halligan e Shah (2014), ao discutirem Inbound Marketing, mostram que conteúdo relevante é a base para atrair, engajar e nutrir relacionamentos de longo prazo. No contexto médico, isso significa educar pacientes e famílias, sempre dentro dos limites éticos definidos pelo CFM, e não usar o conteúdo como ferramenta de manipulação ou pressão comercial.
Passo a passo para criar produtos digitais com segurança

1. Defina seu nicho e público-alvo
Pergunte a si mesmo:
● Em quais temas você é mais procurado ou tem maior expertise?
● As principais dúvidas vêm de pacientes, familiares ou de outros profissionais de saúde?

Exemplos de nichos:
● Educação em saúde para familiares de pacientes com demência;
● Preparo e acompanhamento pós-cirúrgico em ortopedia;
● Orientação para pacientes com doenças autoimunes;
● Gestão de consultório para jovens especialistas.

Quanto mais específico o nicho, mais fácil comunicar o valor do produto.

2. Faça um filtro ético inicial
Antes de escolher o formato:
● O produto promete um resultado clínico específico?
● Existe risco de ser percebido como substituto de consulta médica?
● Há algum ato privativo da medicina sendo “ensinado” a leigos?

Se a resposta for “sim” para qualquer questão, é necessário ajustar a proposta. O foco deve estar em informação, organização da rotina e apoio à adesão, não em diagnóstico ou prescrição.


3. Escolha o formato inicial
Para começar, formatos de menor complexidade costumam ser mais viáveis:

● E-book ou guia em PDF sobre um tema recorrente;
● Minicurso gravado com 3 a 5 aulas curtas;
● Aula única ao vivo, com possibilidade de disponibilizar a gravação.

À medida que ganha experiência, o médico pode evoluir para programas de longa duração, assinaturas e comunidades digitais.

4. Estruture a base legal e tecnológica
● Certifique-se de que a plataforma de cursos ou comunidade respeita a LGPD, oferecendo segurança adequada para dados pessoais e de saúde.
● Se houver telemedicina, siga as normas da Resolução CFM nº 2.314/2022 (registro, prontuário, consentimento, qualidade de conexão).
● Avalie termos de uso e política de privacidade, deixando claro o escopo do produto e os limites de responsabilidade.

5. Produza o conteúdo com rigor científico e linguagem acessível
● Baseie-se em diretrizes, consensos e literatura atualizada;
● Adapte a linguagem ao letramento em saúde do público;
● Use exemplos, analogias e materiais complementares (checklists, infográficos);
● Inclua avisos visíveis de que o conteúdo não substitui consulta médica.

6. Defina modelo de receita e política de preços
Possibilidades:

● Venda avulsa de e-books e cursos;
● Turmas com datas específicas;
● Assinatura mensal ou anual com conteúdos contínuos.

Na precificação, considere:
● Tempo e esforço de produção;
● Valor percebido para o público;
● Custos de plataforma e suporte;
● Coerência com seu posicionamento e com a realidade socioeconômica do público.

Evite práticas que possam ser lidas como captação desleal ou banalização da relação médico-paciente.

7. Planeje a comunicação de forma ética
O modelo AIDA (Atenção, Interesse, Desejo, Ação), atribuído a St. Elmo Lewis, pode ser adaptado ao contexto médico, desde que o foco seja educação e não persuasão agressiva.

Na prática:
● Atenção: conteúdos gratuitos que chamam atenção para um problema de saúde relevante.
● Interesse: materiais que aprofundam o tema e mostram a importância de se organizar para lidar com ele.
● Desejo: apresentação clara do produto digital, com ênfase nos benefícios educacionais.
● Ação: convite para participar, com identificação profissional completa e avisos legais adequados.

Em toda comunicação, informe nome, CRM e, quando aplicável, RQE, e evite adjetivos de autoexaltação (“o melhor”, “o único”).

8. Lance em escala controlada, colha feedbacks e revise
● Comece com um grupo piloto pequeno;
● Colete feedback sobre clareza, aplicabilidade e experiência;
● Use depoimentos com foco na experiência de aprendizado, não em resultados clínicos;
● Revise periodicamente o conteúdo à luz de novas evidências e normas.

Checklist rápido antes de lançar um produto digital
Antes de colocar seu produto no ar, vale conferir:

O objetivo do produto e o público-alvo estão claramente definidos?

O conteúdo tem caráter educativo e não se apresenta como consulta?

Há avisos claros de que o material não substitui atendimento médico?

A divulgação está alinhada à Resolução CFM nº 2.336/2023 e ao Manual de Publicidade Médica?

Não há promessas de resultado, linguagem sensacionalista ou comparações depreciativas com outros médicos?

A plataforma respeita a LGPD e oferece proteção adequada aos dados dos participantes?

O preço é coerente com o valor entregue, com seu posicionamento e com a ética profissional?

Existe um plano de atualização periódica do conteúdo?

Se as respostas forem predominantemente “sim”, o projeto está muito mais próximo de ser um produto digital ético, sustentável e alinhado à missão da medicina.

Empreender com propósito na era dos produtos digitais

Produtos digitais não são solução mágica para todos os desafios da carreira médica, tampouco um atalho para enriquecimento rápido. Quando bem desenhados, porém, podem:

● Ampliar o alcance da educação em saúde;
● Apoiar pacientes e familiares em etapas críticas da jornada;
● Reforçar a autoridade e a reputação do médico;
● Diversificar receitas sem distorcer o sentido da prática médica;
● Contribuir para um modelo de trabalho mais sustentável, em um contexto em que burnout e sobrecarga preocupam toda a comunidade médica (Medscape, 2024).

Ao combinar conceitos clássicos de valor, produto e posicionamento (Kotler & Keller, 2016), o planejamento estratégico inspirado em autores como Drucker (1954) e o respeito às normas éticas do CFM, o médico pode usar o ambiente digital como extensão do seu compromisso com o cuidado, e não apenas como vitrine
comercial.

Criar produtos digitais, nesse sentido, é menos sobre “vender infoprodutos” e mais sobre organizar e compartilhar conhecimento em saúde de forma responsável, ampliando a capacidade de educar, apoiar e transformar vidas, dentro e fora do consultório.


Referências bibliográficas
● Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018, alterada pela Resolução CFM nº 2.222/2018). Brasília: CFM; 2019.
● Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.314/2022 – Define e regulamenta a Telemedicina como forma de serviços médicos mediados por tecnologias de comunicação. Brasília: CFM; 2022.
● Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.336/2023 – Estabelece os critérios norteadores da publicidade e propaganda médicas. Brasília: CFM; 2023.
● Conselho Federal de Medicina. Manual de Publicidade Médica. Brasília: CFM; 2023–2024.
● Drucker PF. The Practice of Management. New York: Harper & Row; 1954.
● Halligan B, Shah D. Inbound Marketing: Get Found Using Google, Social Media, and Blogs. Hoboken: Wiley; 2014.
● IQVIA. Global Trends in Digital Health 2024. Relatório setorial.
● Kotler P, Keller KL. Marketing Management. 15th ed. Harlow: Pearson Education; 2016.
● Medscape. Physician Burnout & Depression Report 2024. New York: WebMD; 2024

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