O diabetes é um grupo de doenças metabólicas caracterizadas por hiperglicemia, geralmente causada por defeitos na secreção ou ação da insulina. A Federação Internacional de Diabetes (IDF) estima que 537 milhões de adultos têm diabetes, com o Brasil ocupando a 6ª posição mundial em casos. Em consonância aos quadros de diabetes, a síndrome dos ovários policísticos (SOP) também possui etiologia relacionada na maioria dos casos a resistência insulínica, sendo uma das endocrinopatias mais comuns em mulheres em idade reprodutiva e prevalência variando entre 6% e 20%. Em todas as situações, a mudança de hábitos de vida deve ser a principal ação a ser tomada pelo paciente e, caso não haja melhora, o uso de metformina, pode ser iniciado, sendo este o medicamento de primeira escolha para estes casos, associado ou não a outros tratamentos.1-6
Como todo medicamento, a metformina possui efeitos colaterais deletérios ao seu uso prolongado, sendo que dentre os principais efeitos, a depleção dos níveis séricos de vitamina B12 é um dos mais reconhecidos atualmente. Os mecanismos exatos pelos quais a metformina leva à deficiência de vitamina B12 ainda não são completamente compreendidos. Existem várias hipóteses, incluindo a interrupção da circulação êntero-hepática de B12, aumento do armazenamento hepático de B12, redução na produção do fator intrínseco e diminuição da motilidade intestinal com consequente proliferação bacteriana. A teoria mais amplamente aceita sugere que a metformina antagoniza os íons de cálcio, o que impede a ligação dependente de cálcio entre o complexo vitamina B12-fator intrínseco (FI) ao receptor cubilina no íleo, resultando na redução da endocitose da vitamina B12.7-8
Figura 1: Mecanismos postulados responsáveis pela deficiência de vitamina B12 induzida por metformina. A metformina pode causar deficiência de vitamina B12 por meio de um ou mais dos seguintes mecanismos: (1) Interferência na ligação dependente de cálcio do complexo fator intrínseco (IF)-vitamina B12 ao receptor de cubilina em enterócitos no nível do íleo e/ou interação com o receptor endocítico de cubilina; (2) Alteração no metabolismo e reabsorção do ácido biliar, resultando em circulação entero-hepática prejudicada de vitamina B12; (3) Secreção reduzida de IF pelas células parietais gástricas; (4) Aumento do acúmulo de vitamina B12 no fígado, resultando em distribuição tecidual alterada e metabolismo da vitamina B12; e (5) Alteração na motilidade do intestino delgado, resultando em supercrescimento bacteriano do intestino delgado e subsequente inibição da absorção do complexo IF-vitamina B12 no íleo distal. B12: Vitamina B12; BAs: Ácidos biliares; IF: Fator intrínseco. Adaptado de: Infante M, et al. (2021)7
Uma recente revisão sistemática com meta-análise aponta que esta redução pode ocorrer inclusive a curto prazo. O uso de metformina em pacientes com diabetes tipo 2 por até 4 meses foi associado a uma redução significativa nos níveis de vitamina B12, com uma diminuição média de 57 pmol/L (IC 95%: –35 a –79). Com base nesse efeito, é provável que uma proporção considerável desses pacientes esteja em risco de desenvolver uma deficiência grave de B12 ou, pelo menos, níveis próximos à deficiência durante os primeiros quatro meses de tratamento.9
O estudo realizado por Esmaeilzadeh, et al., (2017)10 examinou o impacto da metformina nos níveis séricos de homocisteína (Hcy), vitamina B12 (vit B12) e ácido fólico em mulheres com síndrome dos ovários policísticos (SOP). Dezoito pacientes com SOP foram tratadas com metformina (500 mg duas vezes ao dia) durante 6 meses, e os níveis desses biomarcadores foram avaliados antes e após o tratamento. Os resultados mostraram que, embora não tenha havido diferenças significativas nos níveis séricos de Hcy e ácido fólico, houve uma redução significativa nos níveis de vitamina B12 após 6 meses de terapia (P = 0,002).
Além da relação entre metformina e vitamina B12, existem outras evidências sobre seu impacto em todo o ciclo da metionina-homocisteína. Um estudo realizado por Wile DJ, et al., (2010)11 explorou a relação entre o uso de metformina, o aumento dos níveis de homocisteína e ácido metilmalônico, e o agravamento da neuropatia periférica diabética. Os resultados mostraram que pacientes diabéticos em tratamento com metformina apresentaram elevações significativas nesses biomarcadores, o que está associado a uma piora clínica dos sintomas relacionados a esta deficiência. A pesquisa sugere que a deficiência de vitamina B12, frequentemente causada pelo uso prolongado de metformina, pode ser um fator crítico para essa condição, destacando a importância de monitorar regularmente os níveis de vitamina B12 nesses pacientes.
Parry-Strong e cols (2016) realizaram um estudo prospectivo, randomizado e paralelo com 34 pacientes usuários de metformina e com deficiência sérica de vitamina B12 para receber: 1) administração única de 1 mg de hidroxocobalamina por via intramuscular; administração sublingual de 1 mg/dia de mecobalamina por um período de 3 meses. Após 3 meses, a média (DP) de vitamina B12 foi de 372,1 (103,3) pmol/L no grupo do comprimido sublingual em comparação com 251,7 (106,8) pmol/L no grupo da injeção intramuscular, diferença estimada pela ANCOVA -119,4 (IC 95% -191,2 a -47,6), p=0,002. Após 6 meses, a média (DP) de B12 sérica foi de 258,8 (58,7) pmol/L no grupo comprimido sublingual e 241,9 (40,1) pmol/L no grupo injeção intramuscular. Teste ANCOVA estimou a diferença de -15,2 (IC 95% -50,3 a 19,8), p=0,38). Maior dose de metformina foi associada a menor B12 sérica em 3 meses, mas não na linha de base ou 6 meses. Estes dados indicam que a deficiência de vitamina B12 em pacientes tratados com metformina pode ser corrigida pela administração de mecobalamina pela via sublingual, com benefícios aos 12
Recentemente, a Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN) divulgou no International Journal of Nutrology o “Consenso da Associação Brasileira de Nutrologia sobre Diagnóstico, Profilaxia e Tratamento da Deficiência de Vitamina B12”, com base em uma análise de 84 estudos científicos. No documento, foram incluídos entre os grupos de risco os pacientes que utilizam metformina. O documento inclui pacientes em uso de metformina entre os grupos de risco para deficiência de vitamina B12. O consenso recomenda a suplementação profilática de vitamina B12 para todos os pacientes desses grupos, independentemente dos resultados dos exames laboratoriais, enfatizando a importância dessa medida para aqueles em tratamento com metformina.13
Em síntese, o uso prolongado de metformina em pacientes com diabetes e SOP pode levar a uma diminuição significativa dos níveis séricos de vitamina B12, com potenciais repercussões negativas, como o agravamento da neuropatia periférica diabética, condições neurológicas e hematológicas, podendo gerar quadros irreversíveis em algumas situações. A evidência científica reforça a necessidade de monitoramento contínuo dos níveis de vitamina B12 e a adoção de suplementação profilática para prevenir deficiências e complicações associadas, mesmo quando não há deficiências constatada em resultados laboratoriais. Estudos comparativos indicam que os suplementos sublinguais de mecobalamina são eficazes para restaurar os níveis de vitamina B12. Portanto, a integração dessas práticas no cuidado dos pacientes pode otimizar o tratamento do diabetes e da SOP e reduzir o risco de complicações relacionadas à deficiência de vitamina B12 em pacientes usuários de metformina.
Referências:
1- American Diabetes Diagnosis and classification of diabetes mellitus.Diabetes Care. 2014 Jan;37 Suppl 1:S81-90.
2- Rodacki M, Teles M, Gabbay M, Montenegro R, Bertoluci M, Rodrigo Lamounier. Classificação do diabetes. Diretriz Oficial da Sociedade Brasileira de Diabetes (2023).
3- INTERNATIONAL DIABETES IDF Diabetes Atlas. 10th ed. 2021. Disponível em: https://profissional.diabetes.org.br/wp- content/uploads/2022/02/IDF_Atlas_10th_Edition_2021-.pdf. Acesso em: 8 ago. 2024.
4- Luciana Bahia, Bianca de Almeida-Pititto. Tratamento do DM2 no SUS. Diretriz Oficial da Sociedade Brasileira de Diabetes (2024).
5- Gong L, Goswami S, Giacomini KM, Altman RB, Klein TE. Metformin pathways: pharmacokinetics and Pharmacogenet Genomics. 2012 Nov;22(11):820-7.
6- Síndrome dos ovários policísticos. 3a ed. São Paulo: Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO); 140p. (Série Orientações e Recomendações FEBRASGO, n.1, Comissão Nacional de Ginecologia Endócrina).
7- Infante M, Leoni M, Caprio M, Fabbri Long-term metformin therapy and vitamin B12 deficiency: An association to bear in mind. World J Diabetes. 2021 Jul 15;12(7):916-931
8- Sayedali E, Yalin AE, Yalin S. Association between metformin and vitamin B12 deficiency in patients with type 2 World J Diabetes. 2023 May 15;14(5):585-593.
9- Chapman LE, Darling AL, Brown JE. Association between metformin and vitamin B12 deficiency in patients with type 2 diabetes: A systematic review and meta- Diabetes Metab. 2016 Nov;42(5):316-327.
10- Esmaeilzadeh S, Gholinezhad-Chari M, Ghadimi R. The Effect of Metformin Treatment on the Serum Levels of Homocysteine, Folic Acid, and Vitamin B12 in Patients with Polycystic Ovary J Hum Reprod Sci. 2017 Apr- Jun;10(2):95-101.
11- Wile DJ, Toth Association of metformin, elevated homocysteine, and methylmalonic acid levels and clinically worsened diabetic peripheral neuropathy. Diabetes Care. 2010 Jan;33(1):156-61
12- Parry-Strong A, Langdana F, Haeusler S, Weatherall M, Krebs J. Sublingual vitamin B12 compared to intramuscular injection in patients with type 2 diabetes treated with metformin: a randomised N Z Med J. 2016 Jun 10;129(1436):67-75.
13- Nogueira-de-Almeida, A., Fernandes, S. L., Soriano, E. de A., Lourenço, D. M., Zotarelli Filho, I. J., Iucif Junior, N., & Ribas Filho, D. (2023). Consensus of the Brazilian Association of Nutrology on diagnosis, prophylaxis, and treatment of vitamin B12 deficiency. International Journal of Nutrology, 16(1).